ARTIGO - Automação e trabalho: sobre monturos, futuros e apuros

Breves comentários ao PL n. 1.091/2019, da Câmara dos Deputados

Olá, caro leitor! Parafraseando o incomparável Beto Guedes, entrou – e já saiu – setembro. Eis a Primavera! E qual a boa-nova a andar nos campos?

Há poucas. E não são boas. Para além da Lei 13.874/2019 – da liberdade econômica, com alguns notáveis retrocessos no campo do Direito do Trabalho (embora bem menores do que aqueles originalmente atinados) –, da aprovação da Lei 13.869/2019 – do abuso de autoridade, sinalizando muitos conflitos em audiências e malbaratando o princípio da taxatividade penal (mas disso trataremos em uma coluna futura) – e da iminente aprovação da Reforma da Previdência (PEC n. 6/2019), seguimos vivendo a surrealidade de um país externamente submerso em polêmicas de pouca ou nenhuma relevância e internamente conflagrado pelo mesmo maniqueísmo político insensato de 2018.

Vamos, pois, falar de primaveras que se projetam mais além. Falemos, nesta coluna, de automação. E da promessa constitucional vazada no art. 7º, da Constituição da República, até hoje – quase 31 anos depois – sem qualquer concreção legal:

Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] XXVII – proteção em face da automação, na forma da lei; […]”

No entanto, bem debaixo da malha social, crepita recôndita a chama que poderá queimar prematuramente os empregos do futuro, animada pelos ventos da “Indústria 4.0” (a integrar, para o fim da máxima produtividade com mínimas perplexidades, as técnicas de automação, a internet das coisas, a inteligência artificial e outras novidades especialíssimas dos albores deste século XXI).

Assim é que, nos Estados Unidos da América, entre 2000 e 2010, perderam-se mais de 5,6 milhões de empregos industriais, sendo que 85% dessas perdas derivaram da introdução de mudanças tecnológicas (e, notadamente, as técnicas de automação). Para LARRY ALTON, os EUA poderão perder mais 73 milhões de empregos, ainda em razão da automação, até o ano de 2030, com perdas ainda mais expressivas em outras partes do mundo. Eis o quadro real, para além das surrealidades. Quadro atual e o projetado.

Já ouviu a expressão “fogo de monturo”, amigo leitor?

Vem de um popular provérbio português e designa aquele tipo de fogo que começa por baixo do entulho, sem quase fazer fumaça, e logo se alastra, queimando tudo antes mesmo que se possa reagir. Pois bem, é disto que estamos falando. Milhões de empregos desaparecendo bem debaixo dos nossos narizes. É tempo de esboçar reações, porque a fumaça – que não é pouca – já pode ser vista.

Nessa linha, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) apresentou ao Parlamento, no ano de 2018 – quando o primeiro subscritor deste texto ainda a presidia, com muita honra –, anteprojeto de lei dedicado a regulamentar o art. 7º, XXI, da Constituição da República, introduzindo garantias sociais mínimas, nos âmbitos trabalhista e previdenciário, em favor do cidadão alcançado pelo fogo de monturo da automação. Esse anteprojeto foi bem recebido, aperfeiçoado e apresentado pelo Deputado Wolney Queiroz (PDT/PE), já no início de 2019 (25/2), estando atualmente em tramitação. Trata-se do PL n. 1.091/2019 – que “[r]egula o disposto no inciso XXVII, do art. 7º, da Constituição Federal, que estabelece o direito de o trabalhador urbano e rural ter ‘proteção em face da automação, na forma da lei” –, ora aguardando designação de relator na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Pode-se ler a sua íntegra aqui.

A proposta tem por premissa, a uma, a inexorabilidade da automação como realidade da economia do terceiro milênio; e, a duas, o conteúdo de Sollen (= dever-ser) que, a esse propósito, dimana do texto constitucional. Sem fatalismos ou preciosismos, busca soluções intermediárias que atendam ao vetor destrutivo das novas tecnologias – na melhor acepção schumpeteriana – e, bem assim, às consequentes necessidades do Estado social.

Vamos conhecer algo mais do PL n. 1.091/2019, não sem antes compreender o seu entorno contextual.

1. O CONTEXTO: QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

A segunda revolução tecnológica, também batizada de quarta revolução industrial – donde a expressão “Indústria 4.0”, empregada acima -, tornou-se já realidade em diversas praças industriais. E seguirá se alastrando, até dominar toda a cena capitalista do século XXI.

Antevendo esse panorama, o Poder Constituinte originário estatuiu como direito de todos os trabalhadores, na forma da lei, a proteção em face da automação (art. 7º, XXVII – supra). Atente-se a que esse direito não é titularizado apenas pelos atuais trabalhadores, mas também por todos aqueles que um dia pretendem se empregar. Analogamente ao que dispõe o art. 225, caput, da Constituição, trata-se de um direito social insculpido para as atuais e futuras gerações de trabalhadores. Isso porque o nosso fogo de monturo – a automação – não ameaça apenas os empregos atuais, mas a própria existência de ocupações bastantes para toda a população economicamente ativa que se acumulará nos anos futuros. Dela – da automação – sobretudo deriva o chamado desemprego estrutural, caracterizado pela perpetuidade da extinção.

Ocorre que, embora de exponencial relevância, o direito social previsto no art. 7º, XXVII da CF vincula-se a norma constitucional de eficácia limitada: para ganhar efetividade, depende de lei ordinária regulamentadora, nos termos do próprio inciso XXVII. E, como visto acima, seguimos em um desconcertante vácuo legislativo, apesar das centenas de milhares de empregos já perdidos com a automação, no Brasil, desde a década de oitenta.

A letargia brasileira não é fato isolado. Há poucos anos, KLAUSS SCHWAB, fundador do Fórum Econômico Mundial, denunciou o baixo nível de compreensão, entre as atuais lideranças, de quais seriam as decisões acertadas, por parte de governos e da iniciativa privada, para garantir travessia segura neste tsunami de inovações tecnológicas:

“Primeiro, acredito que níveis exigidos de liderança e compreensão sobre as mudanças em curso, em todos os setores, são baixos quando contrastados com a necessidade, em resposta à quarta revolução industrial, de repensar nossos sistemas econômicos, sociais e políticos. O resultado disso é que, nacional e globalmente, o quadro institucional necessário para governar a difusão das inovações e atenuar as rupturas é, na melhor das hipóteses, inadequado e, na pior, totalmente ausente”.1

Não obstante, dada a magnitude da ameaça sobre o emprego em geral, a inércia legislativa começa a beirar a irresponsabilidade; e, mais uma vez, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.

Segundo estudo realizado na Oxford Martin School por CARL BENEDIKT FREY e MICHAEL OSBORNE, 47% do emprego total nos Estados Unidos está em risco; e, para os pesquisadores, trata-se de algo que “poderá ocorrer em uma ou duas décadas, sendo caracterizado por um escopo muito mais amplo de destruição de empregos e por um ritmo de alterações muito mais veloz do que aquele ocorrido no mercado de trabalho pelas revoluções industriais anteriores”2.

As projeções para a América Latina são ainda mais impactantes: calcula-se que 68% dos atuais postos de trabalho estão expostos ao risco de extinção em razão da automação, em horizonte temporal curtíssimo3.

Nesse cenário, ao defender a adoção de uma governança pública ágil para fazer frente ao desemprego estrutural, SCHWAB esclarece que tal governança – e o esforço regulamentar que deve vir com ela – “não implica incerteza regulamentar, nem atividade frenética e incessante por parte dos decisores políticos”. Algum avanço regulamentar, todavia, é imperioso:

“Na era da quarta revolução industrial, não precisamos necessariamente de mais políticas […], mas de um ecossistema normativo e legislativo que possa produzir quadros mais resilientes […] [O]s governos – em colaboração com a sociedade civil e empresarial – precisam criar regras, pesos e contrapesos para manter a justiça, a competitividade, a equidade, a propriedade intelectual inclusiva, a segurança e a confiabilidade.”4

Para tanto, diz o autor, o ser humano deve ser o centro de todas as decisões (e não a economia marginal, a eficiência ou qualquer outro valor abstrato). Eis, então, o desafio: garantir que as inovações floresçam, enquanto minimizam-se os riscos.

Nessa linha, precisamente, a ANAMATRA elaborou o texto-base do Projeto de Lei n. 1091/2019, do Deputado Wolney Queiroz, com as premissas já apontadas acima. Pretendeu alcançar, com a flexibilidade necessária, as duas dimensões mais evidentes do direito constitucional à proteção em face da automação: a dimensão trabalhista e a dimensão previdenciária.

A concepção da proposta em duas dimensões é de especial importância, uma vez que a proteção trabalhista deverá prevenir ou ao menos atenuar os efeitos da automação para os trabalhadores atuais, enquanto a proteção previdenciária destinar-se-á sobretudo às gerações futuras de trabalhadores cujos empregos forem ceifados pelos contínuos processos de automação (seja porque sua profissão foi extinta e não houve condições de recolocação, seja ainda porque simplesmente não há mais ocupações disponíveis naquele segmento).

Tudo, porém, pode ser aperfeiçoado. Assim, na regulamentação do art. 7º, XXVII, da Constituição, caberá cogitar, adiante, de uma terceira dimensão, tão desejável quanto fundamental, sendo certo – como aponta SCHWAB (supra) – que a governança pública, nessa matéria, deve buscar justiça e equidade, mas também deve perseguir a competitividade. Nesse sentido, uma dimensão aduaneira deverá ter seu espaço na futura regulamentação.
Passemos, portanto, a tecer algumas considerações em torno do referido projeto.

2. PL n. 1.091/2019: DA PARTE GERAL

As diretrizes gerais da proposta são dadas pelos dois artigos iniciais do PL n. 1.091/2019. No parágrafo 2º do art. 1º, refere-se portaria do Ministério do Trabalho – que, a propósito, não existe mais (e, logo, a incumbência seria da Secretária Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia) – que discriminaria, em rol exauriente, todas as técnicas consideradas “métodos de automação” para os fins da lei.

A autoridade administrativa dirá, portanto, quais técnicas subsumem-se ao conceito do art. 1º, §1º (“Para os efeitos desta lei, considera-se automação o método pelo qual se utilizem quaisquer equipamentos, mecanismos, processos ou tecnologias para realização de trabalho, ou para seu controle, com reduzida ou nenhuma interferência humana”), atualizando periodicamente tais elencos.

Vale observar, a propósito, que o desafio posto aos governos é o de produzir normas resilientes e não datadas, que possam subsistir diante das novas tecnologias que invariavelmente serão introduzidas nos próximos anos (para além das já existentes). Devem, portanto, ser normas plásticas. Essa característica normativa é essencial para regular um fenômeno tão volátil quanto a quarta revolução industrial. E, por isto mesmo, o PL n. 1.091/2019 opta pela integração administrativa da norma legal (à maneira do que já fez, p. ex., o art. 200 da CLT, em matéria de saúde e segurança do trabalho).

Nessa medida, sobre prever a necessidade de atualização periódica do elenco administrativo de técnicas de automação – o que termina não explicitado no texto em tramitação -, convirá registrar que, de todo modo, não estará afastada a possibilidade de que, a despeito da lacuna episódica da própria portaria administrativa, determinada tecnologia mereça os cuidados da nova legislação, inclusive por analogia, o que será objeto da devida e oportuna consideração pelos quadros da Justiça do Trabalho. Há de se ter certo, portanto, que “rol exauriente”, para efeitos administrativos – se se aprovar a lei com esses termos -, não significa vedação legal a métodos como a analogia e a interpretação extensiva. Afinal, como bem se sabe, até mesmo em sede de Direito Penal se tem admitido a interpretação analógica (assim, p. ex., quanto às hipóteses de homicídio qualificado – art. 121, §2º, CP -, reconhecendo-se que açúcar pode ser entendido como veneno, se se ministra a um diabético).

3. PL n. 1.091/2019: DA PROTEÇÃO TRABALHISTA

Seguindo-se às “normas gerais”, os artigos 3º ao 10 cuidam da proteção trabalhista em face dos efeitos da automação. Vejamos:

“Art. 3º. Para fins de discussão, consulta, implementação e fiscalização, como também para os fins do art. 2º, o empregador ou tomador de serviços é obrigado a comunicar ao sindicato da respectiva categoria laboral e à Superintendência Regional do Trabalho competente, com antecedência mínima de seis meses em relação à data de adoção ou implantação da automação, conforme definida no art. 1º desta Lei:

“I – o tipo de equipamento, mecanismo, tecnologia ou processo a ser adotado, implantado ou ampliado;

“II – o nível de impacto da nova tecnologia sobre as condições de trabalho;

“III – a relação dos empregados atingidos com a mudança operacional;

“IV – a planificação de treinamento e readaptação dos empregados, de modo a que eles possam vir a desenvolver ou desempenhar novas funções, para o mesmo empregador ou grupo econômico.

“Art. 4º. A comunicação de que trata o art. 3º desta Lei será acompanhada das informações e documentos pertinentes à adoção ou implantação da respectiva automação, com vista ao conhecimento prévio dos objetivos, extensão e cronograma do modelo adotado.

“Art. 5º. As pessoas naturais, jurídicas ou entes despersonalizados que adotarem qualquer método de automação devem garantir, aos empregados remanescentes, as mesmas ou melhores condições de trabalho.

“§ 1º Caberá ao empregador ou tomador de serviços proporcionar aos empregados envolvidos, por meio de programas e processos de readaptação, capacitação para novas funções e treinamento.

“§ 2º O empregador não poderá demitir sem justa causa quaisquer empregados, nos primeiros seis meses, e nenhum dos empregados readaptados para outras funções, nos primeiros dois anos, sempre contados a partir da adoção, implementação ou ampliação da automação da empresa.

“§ 3º Durante os dois primeiros anos de adoção da automação, só poderá haver dispensa de trabalhadores mediante prévia negociação coletiva e adoção de medidas para reduzir os impactos negativos da implantação do programa, encaminhando-se os trabalhadores dispensados aos centros a serem criados nos termos do parágrafo 5º deste artigo.

“§ 4º Os empregados do sexo feminino, os aprendizes, os idosos e aqueles com maior número de filhos ou dependentes, respeitados os percentuais dos segmentos especialmente protegidos, terão precedência, nesta ordem, no processo de reaproveitamento e realocação de mão de obra.

“§ 5º As empresas, com apoio dos sindicatos das respectivas categorias econômicas, manterão centrais coletivas de capacitação e aperfeiçoamento profissional e realocação de trabalhadores, com vista a acelerar os mecanismos de emprego compensatório e facilitar a reabsorção dos dispensados pelo empregador que se automatizar, criando serviços próprios para a respectiva realocação ou utilizando cadastro nacional de emprego mantido pelo Poder Executivo da União.

“Art. 6º. Para a instalação dos métodos de automação, o empregador deverá proporcionar cumulativamente:

“I – treinamento, capacitação e aperfeiçoamento profissional, sob sua responsabilidade, para os trabalhadores substituídos por equipamentos ou sistemas automatizados, visando ao seu reaproveitamento em outra função ou emprego;

“II – treinamento intensivo para exercício da nova atividade, com orientações sobre segurança, higiene e saúde no trabalho para os empregados que forem ser aproveitados para o trabalho com as novas máquinas ou equipamentos a serem implantados;

“III – estabelecimento, em conjunto com o sindicato da categoria profissional de seus empregados, de prioridades setoriais no processo de automação progressiva, iniciando pela eliminação dos postos de trabalho de maior grau de penosidade, periculosidade e/ou insalubridade;

“IV – adoção de medidas e equipamentos de proteção coletiva e individual que efetivamente garantam a segurança e saúde do trabalhador no desempenho de suas atividades;

“V – formação de junta médica autônoma para avaliar as condições físicas e psicológicas dos trabalhadores, especialmente daqueles que vierem a se ativar com produtos ou tecnologias capazes de gerar doenças profissionais ou do trabalho, observados os princípios da prevenção e da precaução;

“VI – controle e avaliação periódica sobre o ritmo e a intensidade do trabalho e do processo de produção, de modo a zelar pela saúde e segurança dos trabalhadores.

“Art. 7º. Ao empregado que não se adaptar às novas condições de trabalho, em decorrência da mudança tecnológica, será garantida opção de remanejamento interno na empresa, de acordo com a sua formação ou habilidades profissionais e com as disponibilidades da empresa.

“Art. 8º. Ressalvados os prazos de garantia provisória no emprego (art.5º, §2º) e observada a negociação coletiva prévia, o empregado dispensado em decorrência da automação de setores da empresa fará jus ao pagamento de todas as verbas rescisórias dobradas, incluída a indenização sobre os depósitos de FGTS (art. 18,§1º, da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990).

“Art. 9º. Fica vedada a dispensa coletiva massiva de trabalhadores decorrente da adoção ou implantação de métodos de automação.
“Parágrafo único. Entende-se por dispensa coletiva massiva a rescisão contratual, concomitante, de dez por cento ou mais do total de empregados de uma mesma unidade de trabalho na respectiva empresa.

“Art. 10. É nula a ruptura contratual decorrente de processo de automação, quando descumprido o disposto nesta Lei.”

Como se percebe, o projeto é ambicioso, em muitos aspectos (como, aliás, deveria ser). Por outro lado, parte dos conceitos tradicionais de empregado e empregador. Essa premissa pode ser observada já no texto do artigo 3º, quando pretende obrigar o empregador ou o tomador de serviços a comunicar previamente, ao órgão competente e ao sindicato da respetiva categoria laboral, a adoção de mecanismos de automação.

Nesse ensejo, considerando-se as novas perspectivas de trabalho que se descortinam diante de nós – e, em especial, a intermediação da prestação de serviços “on demand” por aplicativos de celular (Uber e afins), a sinalizar novas roupagens para os conceitos de empregado, de empregador e de tomador de serviços -, será útil aproveitar a oportunidade do PL n. 1.091/2019, como também do próprio PL n. 2.884/2019 (do Deputado Celso Russomano, que “[d]efine a competência da Justiça do Trabalho para processos que envolvam trabalho individual via plataformas digitais”), para redefinir as linhas de mínima proteção social para os trabalhadores que se sujeitam a essas novas modalidades de intermediação, quando não para redefinir o próprio conceito de subordinação jurídica.

Isto porque, a rigor, a intermediação por plataformas deverá ser compreendida como uma técnica de automação, em algum sentido (ou em vários deles), já que permite dispensar diversos elementos humanos até há pouco necessários aos procedimentos de prestação dos variegados serviços que agora se tornam “uberizados”.

3. PL n. 1.091/2019: DA PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA

Em sede previdenciária, a proposta concebe a proteção previdenciária por meio de um interessante sistema de tributação progressiva, conforme o nível de automação da empresa tributada. E, assim como no tratamento da proteção trabalhista, faz referência à contribuição social para o Programa de Integração Social (PIS) incidente sobre o faturamento do “empregador” (art. 11). Leia-se:

“Art.11. A União instituirá, mediante lei de iniciativa do Poder Executivo, alíquotas adicionais progressivas para a contribuição social do empregador para o Programa de Integração Social, incidentes sobre o respectivo faturamento, nas hipóteses de automação determinante de demissões coletivas que impliquem índice de rotatividade da força de trabalho superior ao índice médio de rotatividade do setor, observados, em todo caso, os termos dos artigos 7º, XXVII, 195, I, “b”, e 239, §4º, da Constituição Federal.

“Art. 12. As alíquotas adicionais de contribuição, instituídas por tempo determinado, incidirão sobre o faturamento mensal da pessoa jurídica ou equiparada para efeitos fiscais, progredindo escalonadamente conforme os pontos percentuais de rotatividade anual acima de média setorial aferida.

“§1º. Os níveis de desemprego e rotatividade setorial serão aferidos a partir de metodologia única, válida para todo o território nacional, desenvolvida e aplicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, observado o prazo do parágrafo 5º.

“§2º. O número de postos de trabalho eliminados em razão de automação deverá ser anualmente comunicado pela pessoa jurídica ou equiparada para efeitos fiscais, por ocasião da coleta de dados para Relatório Anual de Informações Sociais – RAIS.

“§3º. A omissão dolosa dos dados referidos no parágrafo anterior sujeitará a pessoa jurídica ou equiparada a multa em favor do Fundo de Participação do Programa de Integração Social, agravada em caso de reincidência, nos termos de lei complementar.

“§4º. As alíquotas adicionais progressivas por desemprego associado à automação não se aplicarão às microempresas e às empresas de pequeno porte submetidas ao regime do Simples Nacional.”

Pelas mesmas razões aduzidas anteriormente, será bom atualizar a identificação dos sujeitos passivos tributários (“pessoa jurídica ou equiparada”), em vista da virtualização, da deslocalização e da “uberização” dos postos de trabalho, para que a futura legislação não se veja datada, tornando-se inapropriada para as novas formas de contratação do trabalho que o futuro nos legará (como, aliás, o presente já nos tem legado).

Na regulamentação da lei, outrossim, será bom definir com minudência a destinação dos recursos acrescidos do PIS, para que sejam especificamente destinados ao socorro daqueles que foram prejudicados pelo desemprego conjuntural (= sem a extinção da atividade) ou mesmo pelo desemprego estrutural (= com extinção da atividade), se derivados da automação no setor. E, nesse sentido, será interessante prever, na legislação preordenada pelo art. 11, a criação de fundos para a complementação de renda das “vítimas” da automação, durante os períodos de desemprego (tendencialmente mais longos, quanto maior os avanços da automação, as dificuldades econômicas do país e/ou a própria idade do trabalhador).

Caberá talvez reconsiderar, enfim, a isenção plena sugerida para as pequenas e microempresas (art. 12, §4º), considerando-se que, a médio e longo prazos, passarão a ser as principais destinatárias dos métodos de automação, notadamente quando pensados na perspectiva de aplicativos que se desenvolvam por e para “startups”. Veja-se, p. ex., o breve elenco disponível aqui. E o que ali está relacionado é infinitamente inferior ao que potencialmente se poderá fazer, por apps, nas próximas décadas.

4. DA PROTEÇÃO ADUANEIRA

Como referido acima, a atuação dos governos para fazer frente aos desafios da segunda revolução tecnológica deve considerar, dentre outros objetivos, a justiça, a equidade e, para mais, a competitividade nos mercados. Não se trata, diga-se, de competitividade que se busque perante o mercado doméstico, mas sobretudo daquela que se deve conquistar no mercado internacional. Esse aspecto é de suma relevância para a compreensão das observações seguintes.

Como harmonizar, nesse particular, objetivos aparentemente antagônicos, como são a justiça e a equidade nas relações de trabalho, por um lado, e a competitividade das empresas, por outro? A sobretaxa do PIS, associada aos novos encargos trabalhistas apontados no tópico anterior, não representará necessariamente um défice de competitividade da empresa nacional?

A resposta pode ser encontrada exatamente no tratamento tributário a ser dado ao aparente dilema.

É próprio dos tributos aduaneiros o seu caráter extrafiscal: há tributos que se prestam mais à regulação do comércio exterior do que como a ser fonte arrecadatória. Os exemplos mais eloquentes dessa categoria de tributos são os impostos de importação e exportação. Vejam-se, p. ex., os termos da Lei Complementar n. 87/1996 (a “Lei Kandir”), que é o texto legal vigente que mais se aproxima dos desideratos que estamos aqui identificando. A Lei Kandir, com efeito, visa a desonerar de tributos incidentes sobre a circulação dos bens os produtos destinados à exportação e, com isso, alavancar a competitividade do produto brasileiro no exterior.

Eis a linha do que se deve buscar para equacionar o aparente paradoxo que se estabelece entre a necessidade de garantir justiça e equidade, por um lado, e competitividade nos mercados, por outro.

Ao se entender como elemento de “justiça” e “equidade” o próprio arcabouço de proteção em face dos efeitos deletérios da automação e, da mesma forma, ao se compreender como elemento de “competitividade” a máxima aplicação da automação para o barateamento do produto nacional no mercado externo, chega-se à conclusão de que, assim como a Lei Kandir isenta de determinados tributos a circulação das commodities destinadas ao comércio exterior, normas aduaneiras de proteção contra os efeitos deletérios da automação devem distinguir as atividades desenvolvidas no território nacional entre aquelas atividades que visam a produzir para o mercado externo e aquelas que visam ao mercado interno.

Traçada essa linha divisória, podem-se conceber interessantes propostas legislativas que oportunizem, a um tempo, a proteção geral dos empregos nacionais e a competitividade da empresa brasileira, desde que se estimule a automação especialmente para a produção externa. Assim, p. ex., seria possível cogitar de políticas cíclicas de estímulo à exportação que permitissem sobretaxar, com a alíquota adicional progressiva previdenciária prevista no art. 12 do PL n. 1.091/2019, apenas o faturamento das empresas que produzissem exclusivamente para o mercado interno. Ou, alternativamente, estabelecer, no âmbito da lei preordenada pelo seu art. 11, alíquotas acrescidas diferenciadas de acordo com o destino prioritário da produção.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA INEXORABILIDADE DA EXTINÇÃO DE OCUPAÇÕES

É forçoso reconhecer que, a despeito da implementação de mecanismos trabalhistas, previdenciários e tributários como os já delineados, o avanço dessa quarta revolução industrial é inexorável. A sensível afetação nos níveis de ocupação de todos os países do globo é, portanto, um cenário a se esquadrinhar agora mesmo.

Já por isso, para além da positivação de dispositivos legais que protejam o trabalhador e o segurado em face dos efeitos nocivos da automação, é curial que a autoridade pública – na espécie, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia – desenvolva instrumentos estatísticos aptos a monitorar permanentemente os níveis de emprego, de jornada e de remuneração nos diversos segmentos econômicos, combinando-os com a catalogação dos dados de automação por setor e construindo, a partir disto, políticas públicas voltadas para o fomento do pleno emprego (o que é, afinal, um dever constitucional, ut art. 170, VIII, CRFB).

Com efeito, a redução das jornadas de trabalho e a proibição de realização de horas extraordinárias – combatendo-se mais amiúde o pernicioso fenômeno da “ordinarização” das horas extras -, aliadas aos mecanismos já contemplados pelo PL n. 1.091/2019, podem auxiliar sobremodo na transposição da economia brasileira para os movediços alicerces da quarta revolução industrial, com a mínima segurança de que as mudanças ocorrerão sem maiores sobressaltos, na direção de uma economia economicamente competitiva e socialmente justa.

Utopia, caro leitor?

Talvez.

Mas é tempo de ousar. Especialmente quando o razoável parece ter soçobrado diante de nós, é tempo de ousar. E de subscrever O. WILDE (em 1891):

“A map of the world that does not include Utopia is not worth even glancing at, for it leaves out the one country at which Humanity is always landing. And when Humanity lands there, it looks out, and, seeing a better country, sets sail. Progress is the realisation of Utopias”. (g.n.)

Já temos, então, a nossa utopia. Resta desenhar o nosso mapa.

****************
Sigamos, caríssimos. Obrigado pela leitura. No mês que vem, Lei do Abuso de Autoridade. Ou o que vocês mandarem! Para dúvidas, críticas e sugestões, já sabe: dunkel2015@gmail.com. Você é réu do seu juízo.
————————————————
1 SCHWAB, Klauss. A Quarta Revolução Industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: EDIPRO, 2019. p.17.

2 Idem, p.23.

3 V. PLASTINO, Eduardo. ZUPPOLINI, Mariana. GOVIER, Matthew. América Latina: Competências para o Trabalho na Era das Máquinas Inteligentes. Accenture, São Paulo, p.136, 2018. Disponível em: <https://www.accenture.com/t00010101T000000Z__w__/brpt/_acnmedia/PDF-75/Accenture-America-Latina-Competencias-para-oTrabalho.pdf#zoom=50>. Acesso em: 8/10/2019.

4 SCHAWB, op.cit., pp.73-74

Guilherme Guimarães Feliciano – Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Livre-Docente em Direito do Trabalho e Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), gestão 2017-2019. E-mail: diluvius@icloud.com

Paulo Douglas Almeida de Moraes – Procurador do Trabalho da 24ª Região. Ex-Juiz do Trabalho da 15ª Região. Ex-Auditor Fiscal do Trabalho. Ex-Presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho – IPEATRA.

Tags: Ministério Público do Trabalho, direitos coletivos, direitodo trabalho

Imprimir